sexta-feira, 8 de novembro de 2013

CAÇA AO REBANHO PERDIDO


ZERO HORA 08 de novembro de 2013 | N° 17608

CARLOS WAGNER

Como é a rotina da patrulha rural que tem a difícil missão de tentar frear o abigeato em região próxima à fronteira

O combate ao abigeato na região de fronteira é centenário. Na imensidão das planícies da região, os Abas Largas, unidade da Brigada Militar (BM) especializada na busca de ladrões de gado, travam um jogo de gato e rato com os bandos.

Armas à mão, o grupo formado pelo sargento Dilson Torales da Cruz e pelos soldados Marcus Gilberto Isnardi Devincenzi e Roberto Moura, instala-se a bordo de uma caminhoneta do 6º Regimento de Polícia Montada, com sede em Bagé. Em mais um capítulo desse enfrentamento, a patrulha rural inicia uma jornada de 10 horas de vigilância em uma área de 7,3 mil quilômetros quadrados onde existem 4 mil quilômetros de estradas. A maior parte desses caminhos fica na fronteira seca entre Brasil e Uruguai, local de grande atuação de abigeatários.

– É impossível estarmos em todos os lugares da fronteira. Mas os ladrões sabem que uma patrulha pode surgir do nada na frente deles – afirma o tenente Eduardo Azambuja Martins, coordenador do policiamento rural.

Antes de a patrulha sair do quartel, Martins reúne-se com os policiais e entrega um envelope pardo, com o carimbo de sigiloso. Ali estão informações coletadas pelo serviço de inteligência da BM sobre a atividade de um bando de ladrões de gado na Estrada da Serrilhada, um caminho de chão batido de 60 quilômetros que liga a periferia de Bagé a um vilarejo na linha divisória entre Brasil e Uruguai. A conversa entre o tenente e a patrulha foi objetiva e reservada. Zero Hora acompanhou a equipe durante 10 horas de trabalho, que começaram no início de uma noite de junho e terminaram no final da madrugada do dia seguinte.

Os policiais seguiram em marcha lenta pela Serrilhada. A luz do giroflex fica desligada e os faróis, baixos. Informações do serviço de inteligência apontam que ladrões de gado tinham voltado a atuar na área. A estratégia usada é cortar o arame da cerca e soltar o gado na estrada, conhecida como corredor. Durante a madrugada, grupos de ladrões a cavalo conduzem a tropa no corredor até um caminhão boiadeiro.

– Estamos há duas semanas no encalço deles. No mês passado, soltaram 12 cabeças de gado na estrada – acrescenta o soldado Isnardi, que dirige a caminhoneta enquanto Torales e Moura varrem o acostamento da estrada com luzes de faroletes.

De repente, um deles localiza um novilho preto solto no corredor. O veí- culo para, e os policiais examinam a cerca da fazenda. Não encontram o local onde o arame fora rompido.

Suspendem a busca quando surge a luz de um veículo. Os policiais tomam posição para interceptar o automóvel. O carro para e o motorista se identifica. Era um pecuarista. Com a luz do giroflex, a presença da BM é denunciada, e a chance de chegar aos ladrões diminui. Esse jogo de gato e rato entre abigeatários e polícia vem desde dos tempos em que os Abas Largas faziam as patrulhas a cavalo.




Uma noite de empate no combate ao furto de gado


Na medida em que a patrulha se aproxima da Fronteira, o número de cabeças de gado solto na estrada aumenta. Um dos policiais comenta que boa parte desse rebanho era de pequenos fazendeiros, conhecidos como pecuaristas do corredor. São animais facilmente reconhecidos por causa da aparência magra e da indefinição de raça.

No meio deles, estão vários novilhos, esses de raça definida, das fazendas vizinhas. Os policiais acreditam que esses animais tenham sido deixados ali pelos ladrões, que usam o rebanho de corredor como um espécie de camuflagem.

No meio da madrugada, as luzes e o ronco de um motor de caminhão vindos de uma coxilha próxima chamam a atenção da patrulha. O veículo é parado e examinado.

– Faço parte de uma turma de caminhoneiros que está transportando soja para Bagé. Acabei ficando desgarrado – explica o motorista do caminhão, João Candongara.

No final da madrugada, a patrulha retorna a Bagé. Na contabilidade do sargento Torales, foi uma noite de empate. Não houve prisões, mas pelo menos se evitou que os animais encontrados soltos no corredor fossem levados pelos abigeatários.




Cerco ao varejo também se fecha

O cerco ao varejo, onde a carne sem procedência é colocada à venda, também começa a se fechar. Ações policiais contra receptadores entraram na agenda da Polícia Civil, a exemplo do que é feito com outros crimes. Só em 2013, foram cinco operações.

Em agosto, em Quaraí, na Fronteira Oeste, a Polícia Civil, a Brigada Militar (BM) e a Vigilância Sanitária Municipal realizaram a segunda fase da Operação Carnificina. O objetivo era frear os abigeatários na cidade. No ano passado foram furtadas 62 cabeças e, neste ano, 41 de janeiro a agosto.

Foram vistoriados 20 locais, onde investigações haviam detectado indícios de envolvimento com receptação de carne de abigeato. Em sete deles foram encontrados 600 quilos de carne sem condições para o consumo.

– Em um dos açougues, havia capim colado na carne, um sinal de que o animal havia sido abatido no campo – explica o escrivão Paulo Roberto Nunes Machado, um dos policiais envolvidos na operação.

A origem da carne segue sendo investigada. A operação de Quaraí foi um recado aos criminosos. Uma ação mais complexa ocorreu no mês passado em oito cidades na região de Bagé.

A área é considerada um “viveiro de abigeatários”. Só em Bagé, no ano passado, foram furtadas 164 cabeças. Nos oito primeiros meses de 2013, foram 108. A Operação Carne Limpa, envolveu policiais, técnicos, fiscais e policiais, e vistoriou 80 estabelecimentos. Em 22 deles foram encontrados 800 quilos de carne sem condições de consumo.

– Pela vivência policial, sabemos que parte dessa carne vem do abigeato. E o fato de ter vários órgãos envolvidos dá uma chance maior de obter provas – avalia Cristiano Riberio Ritta, da Delegacia de Roubos, Furtos, Entorpecentes e Capturas de Bagé.


Operação localizou animais abatidos às margens do Rio dos Sinos


Controle mais rigoroso para o período da Copa


A indústria de abate clandestino envolve cerca de 400 mil cabeças de gado a cada ano, segundo estimativa do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados do Rio Grande do Sul (Sindicarne). Mas é apenas uma tentativa de dimensionar uma atividade sobre a qual não há controle.

O produto não tem qualquer inspeção sanitária, o que representa perigo para saúde. Uma mobilização conjunta entre indústria e governo conseguiu reduzir esse volume, que já chegou a 600 mil cabeças.

Ainda assim, a oferta de carne proveniente de abigeato pode comprometer um árduo trabalho de uma década contra o abate clandestino e preocupa o presidente do Sindicarne, Ronei Lauxen.

O temor é compartilhado por autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais, que estão colocando em prática um projeto-piloto de categorização dos serviços de alimentação para a Copa do Mundo 2014 nas cidades-sede dos jogos. Em Porto Alegre, o projeto é tocado pela Equipe de Vigilância de Alimentação, ligada à Secretaria Municipal da Saúde.

– Em linhas gerais, é um check-list de 120 pontos relacionados com o manuseio e a origem dos alimentos que os restaurantes precisarão responder. E serão classificados pelas suas respostas – informa o veterinário Paulo Antonio da Costa, chefe da Equipe de Vigilância da Capital.

Como a carne é o principal cartão-postal dos gaúchos – e um dos principais produtos brasileiros no Exterior, todas as 82 churrascarias e galeterias existentes na cidade estão incluídas no projeto, avisa Costa.


FURTO DE GADO DESAFIA REPRESSÃO

Mais do que resistir ao tempo, o crime de abigeato, que atormenta produtores rurais em todo o Estado, torna-se mais danoso com associação de ladrões a grupos de criminosos

Policiais, fazendeiros e historiadores costumam dizer que o furto de gado, atividade conhecida como abigeato, é um crime que existe desde antes da fundação do Rio Grande do Sul.

Descontada uma eventual imprecisão histórica, é fato que bandos de abigeatários não só sobrevivem há séculos como também chegaram aos dias atuais exibindo maior eficiência nos furtos. Para isso, aliaram-se a quadrilhas que têm outros negócios ilegais e fizeram com que a carne chegasse com mais rapidez ao consumidor.

No princípio, o objetivo do furto era alimentar a família. Era conhecido como abigeato de garupa (veja quadro). Mais tarde, a carne passou a ser vendida aos açougues nas periferias. Hoje, os abigeatários transportam o gado para centros clandestinos de abate.

Entre os motivos que contribuíram para a perenidade desse de crime estão a dificuldade de enquadrar os abigeatários em crimes graves do Código Penal – como formação de quadrilha –, falta de estrutura na investigação e problemas na identificação da procedência da carne.

– É impossível colocar um chip eletrônico em cada pedaço de carne – lamenta o delegado Cristiano Ribeiro Ritta, titular da Delegacia Especializada em Roubos, Furtos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) de Bagé.

Nesta semana, deputados gaúchos aprovaram um projeto de lei que determina a especificação do abigeato nos registros dos índices de criminalidade do Estado. O objetivo é dimensionar melhor o problema para desenhar melhores estratégias de reação. Outra proposta, que tem gerado polêmica, prevê a identificação obrigatória do rebanho. O texto original foi retirado da Assembleia. Para Anna Suñé, coordenadora da Câmara Setorial da Carne da Secretaria da Agricultura, a ferramenta "ajudaria muito" no combate ao crime. O brinco colocado no gado dificultaria a legalização do animal furtado, hoje feita com a emissão de nota fiscal fria. O Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), do governo federal, é voluntário e existe em 153 das 370 mil propriedades rurais gaúchas. No país, 1.687 propriedades estão no Sisbov – 0,5% do total. A baixa adesão está relacionada ao custo.

– No Uruguai, onde o procedimento se tornou obrigatório, o abigeato caiu mais de 40% – afirma Anna.



Vítima virou grife de carne roubada


A cada três meses, uma conversa se espalha entre os receptadores de gado furtado na Campanha, em especial em Dom Pedrito:

– Tem carne do Pötter.

O nome é uma garantia de produto macio e de alta qualidade.

– Virei grife de abigeatário. Os ladrões estabeleceram uma espécie de rodízio entre pecuaristas da região para furtar gado. Eu perco 20 cabeças por ano, todas de raça – conta Valter José Pötter, 64 anos, da Estância Guatambu.

– Eu e os meus vizinhos contratamos seguranças que ficam rodando de moto nas estradinhas de chão batido da região e informam as autoridades sobre qualquer movimentação suspeita – comenta o pecuarista.

O momento de maior tensão é quando os animais prontos para o abate são separados do resto do rebanho e ficam aguardando o caminhão para serem levados ao frigorífico.

Na tentativa de não chamar atenção dos ladrões, os peões são orientados a fazer a separação do gado gordo de maneira discreta. O procedimento nem sempre dá certo, porque os abigeatários, na sua maioria homens do campo, conhecem as rotinas das estâncias.



Estância Guatambu e outras propriedades contrataram segurança particular



Colecionador de ocorrências

Estanislau Mendes Gonçalves, que vive em Vista Alegre, localidade às margens da Estrada da Serrilhada, em Bagé, não é um grande estancieiro, tem uma pequena propriedade. Nem por isso está livre da ação dos ladrões que furtam gado.

– Tenho aqui, dentro de uma pastinha, 60 ocorrências policiais que registrei nos últimos anos por ter sido vítima de abigeatários – conta.

Ele já perdeu 500 animais, a maioria vacas leiteiras. Em uma das investidas, como sinal de protesto por uma das vacas ser magra, os ladrões cortaram as patas e deixaram o animal agonizando no pasto.

– Fizeram uma malvadeza com o bicho só para debochar de mim – lamenta o produtor.



Gonçalves guarda os registros de 60 ocorrências, que somam mais de 500 animais furtados


CERCA DE 14 MIL CABEÇAS DE GADO LEVADAS POR ANO

Segundo a Secretaria de Justiça e Segurança, cerca de 14 mil cabeças de gado são furtadas ao ano no Estado, onde o rebanho chega perto de 14 milhões. Embora corresponda a uma fração do total, o produto do crime é um risco para a saúde pública, diz professor Eduardo Cesar Todo, do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em séculos de enfrentamento, ladrões de gado têm levado vantagem Embora as autoridades conheçam os caminhos que levam a carne do abigeato ao prato do consumidor, não conseguem desmontar os esquemas.


A EVOLUÇÃO DO CRIME NO ESTADO

1. PROPRIEDADES CERCADAS - Até 1880, a carne não tinha preço no mercado, as fazendas não eram cercadas e os rebanhos viviam soltos no campo. Os ladrões de gado vendiam o couro e o sebo e deixavam a carne apodrecendo no campo. Depois, a carne ganhou preço internacional e os uruguaios cercaram suas fazendas, no que foram seguidos pelos proprietários de terra no Rio Grande do Sul.

2. EM TEMPOS DE REVOLUÇÃO - A Revolução Farroupilha (1835-1845) tornou rotina a “desapropriação de rebanhos” para alimentar as tropas. Terminada a guerra, o abigeato se transformou em preocupação para os fazendeiros.

3. O ABIGEATO DE GARUPA - Entre os anos 1930 e 1960, o gado furtado servia para alimentar as famílias dos ladrões. Eles levavam o animal (geralmente uma ovelha) na garupa do cavalo.

4. FORMAÇÃO DE QUADRILHAS - Nos anos 1960, houve aumento no êxodo rural, gerando desigualdade econômica nas cidades. Os furtos passam a servir para abastecer os açougues das periferias. É neste período que começam a se criar bandos de abigeatários.

5. O CRIME ORGANIZADO - Nos anos 2000, as quadrilhas de ladrões de gado se integraram a outros bandos, passando a ser um elo do crime organizado.


COMO É FEITA A LEGALIZAÇÃO

1. EMISSÃO DA NOTA - Bloco do produtor, usado para controlar o comércio, é fácil de obter. O problema: as informações que identificam o animal são gerais – idade aproximada, quantidade e destino. Dados como pelagem e raça são opcionais.

2. ENTREGA À INSPETORIA - Venda é lançada no Sistema de Defesa Agropecuária do Estado, onde cada propriedade tem uma ficha. Se a quantidade de gado existe na propriedade e as vacinas estão em dia, é fornecida uma Guia de Trânsito Animal (GTA), que autoriza o transporte. O problema: os dados do cadastro são informados pelo produtor – ou pelo ladrão.

3. TRANSPORTE COM GTA - Se a carga for parada, os documentos estarão em dia.. O problema: as informações de identificação usadas na GTA são as mesmas da nota fiscal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário